jul 6, 2020
No Fundo de Tudo

Bright Eyes é uma banda que indubitavelmente marcou meu crescimento e influenciou muito minha formação pra que eu me tornasse o ser humano que sou hoje. At The Bottom Of Everything é uma das suas músicas mais reconhecidas, do álbum I’m Wide Awake, It’s Morning, e com razão. Quando conheci a banda, eu era só uma criança que mal entendia inglês, então talvez seja compreensível que eu nunca tinha analisado muito bem a sua letra nas primeiras vezes que a ouvi. Quando me tornei mais velho, fui capaz de enxergar aquilo que eu já amava com um olhar totalmente novo, e dessa vez ainda mais apreciador. Foi quando vi que a música traz uma visão niilista, porém esperançosa, da vida e da morte, mostrando como, de certa forma, ambas se complementam e não precisam ser temidas.

Bright Eyes

A longa introdução contextualiza os quatro minutos e trinta e quatro segundos da música, contando a história de uma mulher em um avião sobrevoando o oceano, a caminho de um encontro com seu noivo. No assento ao lado, um homem que permaneceu em silêncio a viagem inteira, exceto por um momento em que pediu um Bloody Mary. Ela tenta puxar conversa, mas sem sucesso, então pega uma daquelas clássicas revistas que tem em todo avião, colocadas na parte de trás das poltronas, e começa a ler sobre um país de terceiro mundo cujo nome ela nem sequer consegue pronunciar, tudo pra espantar o seu tédio.

Tão desconexa do mundo ao seu redor, ela nem percebe que o avião está caindo de 9 km de altura devido a uma falha no motor. O piloto liga o microfone e, incessantemente, pede desculpas atrás de desculpas. A esse ponto na música, um violão começa a tocar, sendo o primeiro som além da voz do vocalista a ser ouvido. A história continua com a mulher, confusa, percebendo que algo está errado. Ela olha para o homem e pergunta “Onde estamos indo?”. Ele responde “Estamos indo à uma festa, é… é uma festa de aniversário. É sua festa de aniversário, feliz aniversário, querida. Nós te amamos muito, muito, muito, muito, muito, muito, muito.”, e então começa a cantar. Admitidamente, é nesse momento que eu sempre já começo a chorar.

Até poucos segundos antes, ambos eram completos desconhecidos, até que acontece um evento caótico que coloca a vida dos dois em risco e eles se aproximam, como uma forma de consolo mútuo. O estranho, antes frio e silencioso, se torna uma figura quase paterna pra ela, enquanto ambos caem em direção ao fim de suas vidas. A cena satiriza o estado atual do mundo, em colapso total, enquanto continuamos colocando mais e mais pessoas nele, vivendo como se estivéssemos com vendas em nossos olhos. Evitamos encarar a realidade, então inventamos mentiras pra tornar nossa experiência menos dolorosa.

Os versos seguintes criticam a sociedade e como tentamos nos cegar à realidade através de toda forma oferecida pelo sistema capitalista, com medo não apenas do que nos espera mais à frente, mas também do que já está diante de nós. Preferimos acreditar que o sistema busca o bem de todos, ignorando que muitos não têm acesso sequer a serviços básicos de saúde, sendo abandonados para morrer, ou com a Igreja reforçando ainda mais o medo da morte ao ameaçar com punições eternas aqueles que não agradarem à divindade criadora.

O futuro é incerto. A única certeza que temos é que, um dia, todos nós, um por um, dormiremos e nunca mais acordaremos, ou acordaremos e nunca mais voltaremos a dormir. Ainda assim, precisamos ter coragem pra seguir em frente e encarar o que a vida nos preparou, independentemente do medo. No fim, não levamos nada do que conquistamos na Terra para o outro lado. No fim, somos todos iguais.

O refrão traz uma das frases que mais amo no mundo: “Death will give us back to God just like the settling sun is returned to the lonesome ocean”, traduzida para “A morte nos retornará a Deus assim como o sol poente retorna ao oceano solitário”. Afinal, o sol, ao se pôr, do ponto de vista de uma praia ou um barco, parece afundar no oceano, como se estivesse morrendo, mas, no dia seguinte, ele sempre retorna. O próprio título do álbum, I’m Wide Awake, It’s Morning, faz referência a esse conceito. A morte nunca é definitiva, um dia vamos todos nos reencontrar, seja numa possível reincarnação, na vida após a morte ou até mesmo debaixo de covas vizinhas, onde nos tornamos um só com o solo.

O último verso, “I’m happy just because I found out I am really no one”, ou “Estou feliz só porque percebi que eu realmente não sou ninguém” celebra a beleza na aceitação da nossa insignificância diante da grandeza do universo. Não se deve levar a vida tão a sério, afinal, a morte é inevitável. O melhor a fazer talvez seja aproveitar o tempo que temos e usá-lo da melhor maneira possível, buscando contentar-se com pouco e fazer o bem.

Não devemos lamentar pela viagem ter um fim, mas nos alegrarmos por termos tido a oportunidade de fazer parte dela. Sem a morte, a vida não teria sentido, e, sem a vida, a morte também não. São faces opostas da mesma moeda, que se completam e dão sentido pro universo, inerentemente movido por essas duas leis. E isso não precisa ser deprimente, mas pode ser libertador.